Marcos - A clínica
Em tardes ensolaradas de sábado
seu pai costumava leva-lo para passear em algum lugar da cidade.
Marcos guardava bem vivo em sua memória esses passeios. Suas
lembranças mais recentes eram de quando ele tinha entre sete e oito
anos. Como quase todo garoto dessa idade, Marcos via seu pai
como um herói.
E realmente seu pai não
decepcionava, pois estava sempre presente. Mesmo sendo um empresário
bem sucedido e com vários compromissos ele sempre encontrou tempo
para seu filho. Foi ele quem o levou para escola pela primeira vez.
Ele que ia nas reuniões de pais e professores. Os dois jogavam bola
juntos, andavam de bicicleta, brincavam de esconde-esconde e jogavam
bolita. Seu pai era seu melhor amigo.
Em um desses passeios, eles
foram no parque Redenção. Marcos adorava ir até lá. Poderia ficar
horas correndo por lá, olhando os pequenos macacos fazendo suas
macaquices. Era um lindo dia aquele. O sol era ameno, típico de
primavera. Muitas pessoas passeando distraídas, casais de namorados
aqui e ali. Idosos aproveitando o sol, contando histórias de uma
Porto Alegre mais jovem.
Enquanto Marcos corria em volta
de um pequeno lago, seu pai foi até o pipoqueiro. Comprou dois sacos
de pipoca e o chamou. Os dois sentaram em um banco próximo à jaula
dos macacos quase em frente ao pequeno lago. Marcos falou alguma
coisa sobre andar nos pedalinhos, mas seu pai estava distraído. Logo
ele disse:
Filho. Preciso que prometa uma
coisa muito importante pra mim.
O quê pai?
Seja bom com sua mãe. Eu sei
que ela é meio dura as vezes, mas ela te ama. Nem sempre eu vou
estar por perto Marcos.
Pai, tu vai viajar outra vez?
Hoje não filho.
Marcos levantou do banco e ficou
jogando pipocas para os macacos. Ele não entendeu por que seu pai
lhe disse aquilo, mas ficou meditando por alguns instantes com suas
ideias infantis sobre o assunto. Enquanto isso, seu pai tentava
encontrar um jeito fácil de falar algo grave e pesado a uma criança
de oito anos. Passado alguns minutos seu pai levantou e ficou ao seu
lado. Em seguida uma mulher jovem e muito elegante chegou por perto e
ficou espantada com os pequenos animais. Ela não parecia ser da
cidade. Trocou algumas palavras com o pai de Marcos, que respondeu
distraidamente, enquanto o menino continuava jogando suas pipocas
para os macacos. De repente ele virou e perguntou ao pai:
A mulher ouviu a pergunta e,
visivelmente corada, levou a mão a boca num gesto de surpresa e
espanto. Deu a volta e saiu apressada. Marcos olhou para seu pai que
ria muito. Ele se abaixou e abraçou Marcos.
Sua mãe tinha um pouco de
ciúmes da relação dos dois, mas não ousava manifestar nada a
respeito pois tinha consciência da distância que existia entre ela
e seu filho e, principalmente, sabia que era sua culpa. Sua carreira
estava no auge quando engravidou, isso não permitiu grande
aproximação. Quando ela teve Marcos, estava a um passo de se tornar
diretora executiva de uma multinacional. Mal usufruiu de três meses
de sua licença maternidade, pois montou um home-office no seu quarto
e comandava o que podia de casa. Quem passava mais tempo com Marcos
era a babá.
Esse distanciamento na relação
mãe e filho, que aumentou com o tempo, cobraria um preço alto no
futuro. Marcos passou a não ouvir sua mãe, não a respeitar. Ele
não a distratava, com palavras ou ações. Ele simplesmente não a
via como tendo autoridade sobre ele. Surras não teriam adiantado,
castigos não adiantaram. Ele se sentia rejeitado e se via sempre em
segundo plano. Na adolescência essa situação apenas piorou. O
relacionamento com sua mãe era totalmente diferente da que teve com
seu pai, até este falecer, quando Marcos tinha apenas doze anos. Não
era falta de amor o problema de sua mãe. Era imaturidade materna
talvez. Certo mesmo é que Roberta não tinha planos de ter um filho
tão cedo. Embora a rejeição inicial tivesse passado, ela se negou
a interromper seus planos pessoais para cuidar do filho pois pensava
que mais tarde tudo ia melhorar e que ele a entenderia. Infelizmente
ela estava errada.
O tempo passou e a carreira de
Roberta ficou estável e bem mais tranquila. Ela tinha mais tempo e
duas férias por ano. Ela sofreu bastante a morte do marido,
sobretudo em relação a criação de Marcos. Nos primeiros
meses ele pareceu baixar um pouco a guarda, esboçou apegar-se mais a
sua mãe. Mas logo essa situação mudou e novamente ele voltou ao
seu mundo.
Passava as manhãs na escola e a
tarde ele sumia. Ia andar de skate com sua tribo, cinema com a
namorada, shopping, voava. Como todo adolescente tinha sonhos, medos,
anseios. Mas isso ele só compartilhava com sua namorada. Sua mãe
precisava adivinhar, pois quando se encontravam ele apenas respondia
o que lhe era perguntado com monossílabos. Quando ouvia, pois os
fones estavam sempre na orelha. Isso acabava cansando Roberta, o que
geralmente acabava em discussão. Quando isso acontecia, ia cada um
para o seu quarto. Ela se sentindo inútil, apesar de toda sua
carreira bem sucedida como executiva e empresária e ele sentindo-se
incompreendido, como todo adolescente, e desejando que seu pai
estivesse ali. No fundo ele jamais aceitou a morte de seu pai. E quem
aceita?!
Mas se o ambiente familiar não
é aconchegante o suficiente para um adolescente como Marcos, tenha
certeza de que a rua é. Seus amigos o compreendiam e o apoiavam, e
mais, o baseado que fumavam juntos confortava a todos, não
importando o tipo de problema de cada um ou mesmo se existia algum
problema.
Mais tarde, a faculdade lhe
trouxe ainda mais liberdade, apesar das atividade intensas. Mesmo com
toda a rebeldia, parece que Marcos estava mesmo interessado no curso
de Odontologia. Conquistar a independência total era seu objetivo, e
para isso uma profissão era fundamental. Assim, ele passou a dividir
seu tempo entre a universidade, a namorada, festas e, de vez em
quando, sua mãe.
Mas infelizmente, as coisas não
permaneceram num rumo sustentável. Logo as festas normais
tornaram-se para ele coisa de criança. Então ele passou a procurar
novas festas, novas sensações e novos amigos. O baseado já não
era tão legal, os amigos de infância ficaram caretas e por um
tempo, até sua namorada ficou chata. Um outro Marcos começou a
aparecer, com uma voracidade imensa por algo inexplicável. Querendo
uma liberdade que não existia, pois ele já não estava preso a
nada. Não demorou muito para ele andar em caminhos muito perigosos,
submundos obscuros. Sua mesada, boa até, já não era suficiente.
Ele passou a fazer retiradas furtivas da carteira de Roberta. E como
isso não bastou, certa noite ela abriu a porta para uma visita bem
inesperada. Dois sujeitos, muito suspeitos vieram falar com Marcos
que correu e saiu para fora da casa, fechando a porta atrás de si.
Os dois falaram com ele em tom ameaçador, o empurraram. Quando
Roberta abriu a porta teve tempo de ouvir apenas a frase: “Tu tem
até amanhã.”
Marcos não teve como esconder
tudo o que se passava. Apenas conseguiu inventar uma história que
misturava a compra de um skate com uma aposta e uma grana que ele
perdeu e não pagou. Diante da situação que Roberta presenciou, ela
viu-se obrigada a lhe dar o dinheiro. Apesar de não ter engolido a
história de Marcos, não conseguiu puxar para fora a verdade.
Por um tempo ele diminuiu o
ritmo, se assustou. Ficou em casa alguns dias, matou o curso e ficou
enfiado no quarto. Procurou a antiga namorada outra vez e fizeram as
pazes. Mas como um ciclo difícil de ser quebrado, seus novos
'amigos' vieram lhe procurar, pois era muito popular. Além disso, já
tinha meses que ele vinha nesse ritmo. Estava sentindo falta do
'prazer' dos entorpecentes. Aos poucos ele foi voltando ao ritmo que
havia adquirido. Novas festas, muito loucas. Bares proibidos, clubes
camuflados. Certa noite deu-se conta que já fazia mais de um mês
que matava o curso. Deu de ombros se arrumou e saiu, pulando a janela
do quarto. Uma festa, outra festa. Essa não, não tem pó. Essa sim,
álcool, drogas, descontrole.
Nessa noite Roberta precisou
atender a porta tarde da noite outra vez. Mas desta vez era a polícia
que batia. Apertando as mãos ela perguntou o que era, torcendo para
não ouvir a resposta que imaginava. Eles pediram para que ela fosse
até o hospital onde Marcos dera entrada as três e meia, com
sintomas graves de intoxicação, provavelmente causada por drogas.