domingo, 31 de agosto de 2014

Marcos - A clínica

Em tardes ensolaradas de sábado seu pai costumava leva-lo para passear em algum lugar da cidade. Marcos guardava bem vivo em sua memória esses passeios. Suas lembranças mais recentes eram de quando ele tinha entre sete e oito anos. Como quase todo garoto dessa idade, Marcos via seu pai como um herói.
E realmente seu pai não decepcionava, pois estava sempre presente. Mesmo sendo um empresário bem sucedido e com vários compromissos ele sempre encontrou tempo para seu filho. Foi ele quem o levou para escola pela primeira vez. Ele que ia nas reuniões de pais e professores. Os dois jogavam bola juntos, andavam de bicicleta, brincavam de esconde-esconde e jogavam bolita. Seu pai era seu melhor amigo.
Em um desses passeios, eles foram no parque Redenção. Marcos adorava ir até lá. Poderia ficar horas correndo por lá, olhando os pequenos macacos fazendo suas macaquices. Era um lindo dia aquele. O sol era ameno, típico de primavera. Muitas pessoas passeando distraídas, casais de namorados aqui e ali. Idosos aproveitando o sol, contando histórias de uma Porto Alegre mais jovem.
Enquanto Marcos corria em volta de um pequeno lago, seu pai foi até o pipoqueiro. Comprou dois sacos de pipoca e o chamou. Os dois sentaram em um banco próximo à jaula dos macacos quase em frente ao pequeno lago. Marcos falou alguma coisa sobre andar nos pedalinhos, mas seu pai estava distraído. Logo ele disse:

  • Filho. Preciso que prometa uma coisa muito importante pra mim.
  • O quê pai?
  • Seja bom com sua mãe. Eu sei que ela é meio dura as vezes, mas ela te ama. Nem sempre eu vou estar por perto Marcos.
  • Pai, tu vai viajar outra vez?
  • Hoje não filho.

Marcos levantou do banco e ficou jogando pipocas para os macacos. Ele não entendeu por que seu pai lhe disse aquilo, mas ficou meditando por alguns instantes com suas ideias infantis sobre o assunto. Enquanto isso, seu pai tentava encontrar um jeito fácil de falar algo grave e pesado a uma criança de oito anos. Passado alguns minutos seu pai levantou e ficou ao seu lado. Em seguida uma mulher jovem e muito elegante chegou por perto e ficou espantada com os pequenos animais. Ela não parecia ser da cidade. Trocou algumas palavras com o pai de Marcos, que respondeu distraidamente, enquanto o menino continuava jogando suas pipocas para os macacos. De repente ele virou e perguntou ao pai:
  • Pai, como se faz sexo?
A mulher ouviu a pergunta e, visivelmente corada, levou a mão a boca num gesto de surpresa e espanto. Deu a volta e saiu apressada. Marcos olhou para seu pai que ria muito. Ele se abaixou e abraçou Marcos.


Sua mãe tinha um pouco de ciúmes da relação dos dois, mas não ousava manifestar nada a respeito pois tinha consciência da distância que existia entre ela e seu filho e, principalmente, sabia que era sua culpa. Sua carreira estava no auge quando engravidou, isso não permitiu grande aproximação. Quando ela teve Marcos, estava a um passo de se tornar diretora executiva de uma multinacional. Mal usufruiu de três meses de sua licença maternidade, pois montou um home-office no seu quarto e comandava o que podia de casa. Quem passava mais tempo com Marcos era a babá.
Esse distanciamento na relação mãe e filho, que aumentou com o tempo, cobraria um preço alto no futuro. Marcos passou a não ouvir sua mãe, não a respeitar. Ele não a distratava, com palavras ou ações. Ele simplesmente não a via como tendo autoridade sobre ele. Surras não teriam adiantado, castigos não adiantaram. Ele se sentia rejeitado e se via sempre em segundo plano. Na adolescência essa situação apenas piorou. O relacionamento com sua mãe era totalmente diferente da que teve com seu pai, até este falecer, quando Marcos tinha apenas doze anos. Não era falta de amor o problema de sua mãe. Era imaturidade materna talvez. Certo mesmo é que Roberta não tinha planos de ter um filho tão cedo. Embora a rejeição inicial tivesse passado, ela se negou a interromper seus planos pessoais para cuidar do filho pois pensava que mais tarde tudo ia melhorar e que ele a entenderia. Infelizmente ela estava errada.
O tempo passou e a carreira de Roberta ficou estável e bem mais tranquila. Ela tinha mais tempo e duas férias por ano. Ela sofreu bastante a morte do marido, sobretudo em relação a criação de Marcos. Nos primeiros meses ele pareceu baixar um pouco a guarda, esboçou apegar-se mais a sua mãe. Mas logo essa situação mudou e novamente ele voltou ao seu mundo.
Passava as manhãs na escola e a tarde ele sumia. Ia andar de skate com sua tribo, cinema com a namorada, shopping, voava. Como todo adolescente tinha sonhos, medos, anseios. Mas isso ele só compartilhava com sua namorada. Sua mãe precisava adivinhar, pois quando se encontravam ele apenas respondia o que lhe era perguntado com monossílabos. Quando ouvia, pois os fones estavam sempre na orelha. Isso acabava cansando Roberta, o que geralmente acabava em discussão. Quando isso acontecia, ia cada um para o seu quarto. Ela se sentindo inútil, apesar de toda sua carreira bem sucedida como executiva e empresária e ele sentindo-se incompreendido, como todo adolescente, e desejando que seu pai estivesse ali. No fundo ele jamais aceitou a morte de seu pai. E quem aceita?!
Mas se o ambiente familiar não é aconchegante o suficiente para um adolescente como Marcos, tenha certeza de que a rua é. Seus amigos o compreendiam e o apoiavam, e mais, o baseado que fumavam juntos confortava a todos, não importando o tipo de problema de cada um ou mesmo se existia algum problema.
Mais tarde, a faculdade lhe trouxe ainda mais liberdade, apesar das atividade intensas. Mesmo com toda a rebeldia, parece que Marcos estava mesmo interessado no curso de Odontologia. Conquistar a independência total era seu objetivo, e para isso uma profissão era fundamental. Assim, ele passou a dividir seu tempo entre a universidade, a namorada, festas e, de vez em quando, sua mãe.
Mas infelizmente, as coisas não permaneceram num rumo sustentável. Logo as festas normais tornaram-se para ele coisa de criança. Então ele passou a procurar novas festas, novas sensações e novos amigos. O baseado já não era tão legal, os amigos de infância ficaram caretas e por um tempo, até sua namorada ficou chata. Um outro Marcos começou a aparecer, com uma voracidade imensa por algo inexplicável. Querendo uma liberdade que não existia, pois ele já não estava preso a nada. Não demorou muito para ele andar em caminhos muito perigosos, submundos obscuros. Sua mesada, boa até, já não era suficiente. Ele passou a fazer retiradas furtivas da carteira de Roberta. E como isso não bastou, certa noite ela abriu a porta para uma visita bem inesperada. Dois sujeitos, muito suspeitos vieram falar com Marcos que correu e saiu para fora da casa, fechando a porta atrás de si. Os dois falaram com ele em tom ameaçador, o empurraram. Quando Roberta abriu a porta teve tempo de ouvir apenas a frase: “Tu tem até amanhã.”
Marcos não teve como esconder tudo o que se passava. Apenas conseguiu inventar uma história que misturava a compra de um skate com uma aposta e uma grana que ele perdeu e não pagou. Diante da situação que Roberta presenciou, ela viu-se obrigada a lhe dar o dinheiro. Apesar de não ter engolido a história de Marcos, não conseguiu puxar para fora a verdade.
Por um tempo ele diminuiu o ritmo, se assustou. Ficou em casa alguns dias, matou o curso e ficou enfiado no quarto. Procurou a antiga namorada outra vez e fizeram as pazes. Mas como um ciclo difícil de ser quebrado, seus novos 'amigos' vieram lhe procurar, pois era muito popular. Além disso, já tinha meses que ele vinha nesse ritmo. Estava sentindo falta do 'prazer' dos entorpecentes. Aos poucos ele foi voltando ao ritmo que havia adquirido. Novas festas, muito loucas. Bares proibidos, clubes camuflados. Certa noite deu-se conta que já fazia mais de um mês que matava o curso. Deu de ombros se arrumou e saiu, pulando a janela do quarto. Uma festa, outra festa. Essa não, não tem pó. Essa sim, álcool, drogas, descontrole.
Nessa noite Roberta precisou atender a porta tarde da noite outra vez. Mas desta vez era a polícia que batia. Apertando as mãos ela perguntou o que era, torcendo para não ouvir a resposta que imaginava. Eles pediram para que ela fosse até o hospital onde Marcos dera entrada as três e meia, com sintomas graves de intoxicação, provavelmente causada por drogas.

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